Sessão solene dos 200 anos da Justiça

Intervenção da Ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, por ocasião da Comemoração do bicentenário do primeiro Regulamento Interno da Secretaria de Estado dos Negócios de Justiça, no Salão Nobre do Ministério da Justiça

Catarina Sarmento e Castro

No ano em que se cumprem 200 anos sobre o primeiro Regulamento Interno da Secretaria de Estado dos Negócios de Justiça – que, em 1822, pela mão do então Ministro e Secretário de Estado dos Negócios de Justiça, José da Silva Carvalho, determinava a entrada em funcionamento da instituição criada pela Lei de 23 de agosto de 1821 –, celebramos o Ministério da Justiça.

Mas permitam que precise, a bem do rigor e da justiça que devemos fazer à riqueza deste dia. É que é tríplice o aniversário que neste dia assinalamos: porque recuperamos a celebração do bicentenário da criação da Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, em 1821 – com o lançamento de um selo e a inestimável cumplicidade dos CTT, a quem, na pessoa do Senhor Dr. João Sousa, agradeço; porque celebramos, sim, o bicentenário do seu primeiro Regulamento Interno – que lhe dá forma e a concretiza; e porque, há cento e noventa anos, precisamente a 5 de dezembro, em plena Guerra Civil Liberal, nem o Cerco do Porto impediria D. Pedro de mandar publicar a primeira orgânica desta instituição, na Chronica Constitucional do Porto – sinal inequívoco do empenho e da importância dada pelos liberais à afirmação de uma Justiça independente, que a divisão tripartida de poderes consagrou.

Em pano de fundo, ainda, uma quarta aniversariante: a nossa 1ª Constituição, cujo bicentenário a Assembleia da República oportunamente festejou, e que tantos outros eventos evocaram, ao longo deste ano de 2022.

Nesta circunstância – esperamos que a primeira de outras oportunidades de celebração deste marco –, uma palavra de reconhecimento é devida à Secretaria-Geral do Ministério da Justiça, que, na pessoa da Dra. Helena Esteves, daqui cumprimento e felicito.

Porque o vídeo que abriu esta cerimónia; a viagem pelo tempo que faremos, no Espaço Justiça; os documentos e objetos históricos em exposição; a brochura que vejo nas vossas mãos; um livro que, muito em breve, há-de ver a luz do dia – tudo é fruto exclusivo do dinamismo e do trabalho empenhado da equipa da Secretaria-Geral do Ministério da Justiça. 

Um trabalho de enorme responsabilidade que a Secretaria-Geral não hesitou em assumir, e um trabalho que – eis o fundamental – nos recorda que, se um bicentenário é um marco temporal assinalável, não é tempo, contudo, o que, hoje, essencialmente, importa contar. 

Porque celebrar o Ministério da Justiça – 200 anos de Ministério da Justiça – é, antes de mais, reavivar as histórias, revisitar os caminhos trilhados de que se faz a nossa Memória, recuperar os fios de que se tece a nossa comum Identidade.

São histórias e caminhos habitados, onde ainda reverbera a presença e o labor de todos quantos esboçaram os passos que depois fizemos nossos – e que um dia farão seus os que hão de vir: lugares de Memória viva, de Identidade em contínua e partilhada construção.

Histórias e lugares raras vezes simples, História – disse-o noutra ocasião – cheia de caminhos começados. E não é senão esse ímpeto de abertura de caminhos que um olhar distanciado revela, o mesmo olhar que permite que possamos e devamos reconhecer – sem que com isso percamos o norte dos princípios e o sentido crítico que no seu seio aprendemos a forjar – os passos e as conquistas de civilização que, em todas as épocas, sem exceção, soubemos protagonizar.

Que esse nosso olhar se não distraia, portanto, nem com os sobressaltos iniciais, nem com as nomenclaturas sucessivas – da original Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça à Secretaria de Estado dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, um ano mais tarde; do Ministério da Justiça e dos Cultos, com a República, ao definitivo Ministério da Justiça, sob o Estado Novo.

Que o nosso olhar se não distraia, dizia, do essencial: os passos dados por outros que quisemos fazer nossos e que hão-de querer fazer seus o que nos sucederão; e as ruturas que em nome de princípios protagonizámos, os caminhos novos que começámos e que demos a outros continuar. 

Tudo o mais é circunstância, tudo o mais é marca própria de cada tempo que cada tempo deixa, menos importante do que o burilar paciente, o crivo atento, o compromisso com um futuro sempre em preparação.

Um olhar assim – reconhecido, mas nem por isso acrítico; distanciado, mas nem por isso incapaz de deslumbramento –, dará dimensão justa ao que representou, há 200 anos, a consagração primeira das competências relativas à justiça civil, à justiça criminal ou à inspeção das prisões, ao mesmo tempo que saberá pôr em contexto a mescla com os negócios eclesiásticos, com as nomeações dos lugares de magistratura ou com a segurança pública.

Um olhar assim, entusiasmar-se-á com a republicana separação dos assuntos da Igreja e do Estado, com a criação do Registo Civil (1914), do Arquivo de Identificação (1918) e a emissão dos primeiros bilhetes de identidade (1919), ao mesmo tempo que condescenderá com a menorização das mulheres, em geral, e com as mulheres ativistas republicanas, em particular – Adelaide Cabete, Ana de Castro Osório, Carolina Beatriz Ângelo, Maria Veleda e todas quantas acreditaram na liberdade, igualdade e dignidade das vidas de todas as mulheres –, que veriam as suas expectativas frustradas pela República que tinham ajudado a implantar.

Um olhar assim – reconhecido, mas crítico; distanciado, mas capaz de deslumbramento –, não justificará a ditadura militar, mas dará o merecido relevo à institucionalização da Ordem dos Advogados (1926), à integração da Polícia de Investigação Criminal na orgânica ministerial (1927), à promulgação do estatuto judiciário (1927-1928), à reforma do mapa judiciário ou às codificações no âmbito do registo civil e do processo penal (1929).

O mesmo olhar repudiará, ética e politicamente, o Estado Novo, cuja memória ainda vibra e fere, ao mesmo tempo que não desdenhará da importância que tiveram a implementação da nova rede de estabelecimentos prisionais e o direito de trabalho em ambiente prisional; a assistência judiciária, depois designada apoio judiciário; a reconversão da Polícia de Investigação Criminal em Polícia Judiciária; ou a aprovação do Código de Processo Civil, em 1961, e do Código Civil, em 1966. 

Que esse olhar saiba deixar aos que já não têm memória pessoal de Abril a alegria com que vimos Abril abrir as portas à feminização das magistraturas; a determinação com que o Ministério da Justiça desocupou o Limoeiro e a Cadeia da Relação do Porto; a energia com que se integrou no sistema judicial os tribunais administrativos e fiscais e os tribunais do trabalho, ou se assumiram iniciativas legislativas de monta, como a atualização do Código Civil (1977), ou da legislação penal, com a aprovação de um novo Código Penal (1982), e do processo penal, com a aprovação de um novo Código de Processo Penal (1987).

E que esse olhar faça justiça aos meus antecessores, designadamente aos que, com grande cordialidade democrática, aceitaram estar, hoje, aqui presentes.

Porque lhes somos devedores, a todos e a cada um.  Porventura ainda sem o distanciamento que permitirá o juízo objetivo que contempla todas as circunstâncias, mas sem que qualquer dúvida paire sobre o que foi o seu compromisso com o serviço da República e do interesse público, ou sobre a seriedade com que abraçaram a sua missão.

Ficamos-lhes, pois, devedores, naturalmente entre muitas outras iniciativas, da instituição de uma alta autoridade encarregada de atos de prevenção, apuramento e participação às entidades competentes, para a investigação ou a ação criminal, de atos de corrupção e outras fraudes [Rui Machete]; do regime jurídico de proteção às vítimas de crimes violentos; do “Programa “Nova vida da vida prisional”; ou do “Programa Cidadão e Justiça” [Laborinho Lúcio]; da lei da adoção; da Reforma da Ação Executiva (com criação da figura do solicitador judicial); ou da aprovação do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [Celeste Cardona]; da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção ou do Plano Justiça + Próxima, que garantiu uma maior proximidade ao cidadão, maior agilidade e transparência, através da adoção de novas ferramentas tecnológicas [Francisca van Dunem].

Não quero deixar de evocar o legado do hoje Primeiro-Ministro, o Dr. António Costa. Não por ser hoje o Primeiro-Ministro de Portugal, mas por ser pela sua mão que, em 2001, o Ministério da Justiça sofre uma profunda reforma na organização dos seus serviços, afirmando-se, pela primeira vez, como o departamento governamental “responsável pela conceção, condução, execução e avaliação da política de justiça”.

Por ser pela sua mão que se cria o Gabinete de Política Legislativa e Planeamento e o Gabinete de Relações Internacionais, Europeias e de Cooperação, organismos que dotaram o Ministério da Justiça de condições para se assumir como o centro responsável pela política de justiça na ordem interna e internacional. 

E por ser, ainda, pela sua mão que o Ministério da Justiça passa a dispor de novos instrumentos de avaliação e responsabilização do sistema de justiça, com a criação da Inspeção-Geral dos Serviços de Justiça; e de descongestionamento do núcleo duro do sistema judiciário, com a criação da Direção-Geral da Administração Extrajudicial, dedicada à dinamização dos meios de resolução alternativa de litígios.

Mas que esta brevíssima resenha histórica não falhe o seu propósito e nos recentre no fundamental: o reconhecimento de que celebrar o Ministério da Justiça – 200 anos de Ministério da Justiça – é, essencialmente, reavivar, recriar e aprofundar a Esperança, a possibilidade inaugural: a de dar a todos e a cada um o que por Direito lhe pertence.

A concretização desta possibilidade foi, como mostra a História, interpelada por diferentes desafios – ditados, moldados pelo tempo que lhes foi próprio –, mas não deixou de ser a mesma a possibilidade, a Esperança que a todos nos une e nos irmana numa história comum.

Minhas senhoras e meus senhores

A História da Justiça está comprometida com as suas instituições, e o Ministério da Justiça – este Ministério da Justiça, que tenho o privilégio de dirigir – continuará a honrar a memória de que é herdeiro, ao mesmo tempo que tudo fará para dar resposta aos desafios contemporâneos o interpelam.

Por isso, aos cidadãos do presente, a quem, como Ministra da Justiça, jurei servir e cujo olhar quotidianamente me convoca, quero – sempre, e hoje de forma especial – devolver o olhar e reiterar o compromisso de prosseguir o desígnio de uma Justiça eficiente, ao serviço dos direitos e do desenvolvimento económico-social; de promover a efetiva tutela da pessoa e da dignidade humana; de travar um combate sem tréguas contra a corrupção e de intransigentemente defender a legalidade democrática. 

Não estou – como nenhum de nós, Ministros da Justiça, esteve – sozinha. Ampara-me – como nos amparou a todos – um dos pilares fundamentais para o sucesso das políticas que, ontem como hoje, delineamos.

Refiro-me, naturalmente, a quem, com elevado espírito de missão e dedicação à causa da justiça, possibilitou, possibilita e continuará a possibilitar, através da sua entrega – Secretários de Estado, equipas dos Gabinetes, responsáveis e funcionários de cada um dos mais diversos organismos e entidades que integram este Ministério –, que se mantenha viva a luz da justiça e dos princípios que a animam e lhe dão sentido.

Celebrar o Ministério da Justiça – 200 anos de Ministério da Justiça – é, por isso, também, deixar a palavra de Gratidão devida a todas e a todos quantos, todos os dias, fazem e são Justiça.

E que assim auxiliam e permitem que celebrar o Ministério da Justiça – 200 anos de Ministério da Justiça – seja, enfim, devolver aos cidadãos o gesto atuante, entregando-lhes uma Justiça mais compreensível e moderna, transparente e inclusiva, uma Justiça mais próxima, uma Justiça mais justa e capaz de refundar a Confiança.

Muito obrigada.